quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O ministro da saúde e a briga contratual na importação das vacinas

 



Em entrevista de ontem, o ministro da saúde disse que a negociação com a Pfizer para a importação da vacina empacou nas seguintes cláusulas do contrato internacional




  • Foro no exterior (ou seja, a justiça competente não seria a brasileira);

  • Cláusula de isenção total de responsabilidade; 

  • Disponibilização permanente de ativos brasileiros no exterior para custear possíveis ações judiciais

Vou explicar o que isso quer dizer. 

Em alguma sala em Brasília certamente tem um grupo de advogados internacionais do governo fazendo uma call via Zoom com uma banca de advogados de São Paulo. Provavelmente, na call está também um advogado de Londres ou Washington. O que eles estão discutindo?

Se eles estiverem seguindo o código da nossa pequena e discreta Ordem, certamente estão argumentando mais ou menos como segue.


  1. Foro

Juridicamente, é possível para o governo federal escolher o foro estrangeiro em contratos internacionais desse tipo, pois tanto a lei de arbitragem quanto a lei de licitações têm disposições a esse respeito. Presumo que a Pfizer esteja solicitando que o foro seja nos EUA. 

O problema não deve ser o foro do contrato entre o governo e a Pfizer. Suspeito que o laboratório esteja pedindo que os brasileiros, usuários da vacina, sejam proibidos de processar a Pfizer no Brasil caso sofram algum efeito colateral. 

Isso é muito mais difícil, porque exigiria uma lei especial. Sairia da esfera contratual, de compra e venda, e passaria para a esfera das leis federais sobre processo civil.

E, mesmo assim, essa proibição de uso da justiça brasileira não seria segura para a Pfizer, porque a constituição brasileira protege o direito de ação. Uma cláusula contratual ou lei que limitasse 100% do acesso público à justiça provavelmente seria julgada inconstitucional. 

O que nos leva ao próximo ponto:


  1. Isenção de responsabilidade

Se não dá para ter 100% de certeza que a Pfizer vai ser blindada de ações judiciais no Brasil, ela deve estar pedindo então que o governo federal entre na jogada como fiador. Assim, se a Pfizer tiver algum problema, o governo federal é que pagaria a conta.

Ou seja, o produtor da vacina teria uma irresponsabilidade objetiva (inocente, mesmo quando se prova a culpa), enquanto o governo federal teria responsabilidade objetiva (culpado, mesmo quando se prova que foi inocente). 

Mas, e se o governo federal não pagar as indenizações? A Pfizer ficaria desprotegida?


Bom, aí entra a terceira exigência: 


  1. Bens em garantia no exterior

A Pfizer quer uma garantia de que não vai ter que encarar, potencialmente, 200 milhões de ações judiciais.

A empresa certamente tem diversos tipos de seguros contra responsabilidade civil. Mas, se ele tiver que contratar apólice contra o risco de um país inteiro, isso sairia caro demais, ou seria impossível. 

Então, ela está solicitando que o Brasil gentilmente deixe a conta pré-paga. 

Isso poderia ser feito de duas formas:

GARANTIAS FINANCEIRAS

O Brasil poderia disponibilizar garantias financeiras no exterior, tais como seguros, depósitos em banco, etc. Provavelmente nos EUA. Mas poderia ser também num banco Europeu, ou mesmo algum tipo de depósito em banco multilateral. 

Pessoalmente, acho essa exigência humilhante. Ela relembra práticas comuns na época da diplomacia armada, quando um país tomava do outro um porto, ou uma cidade inteira, ou os rendimentos de determinado imposto, como garantia.

GARANTIAS ESTRUTURAIS - FUNDOS


Contudo, colocando a geopolítica de lado, é preciso lembrar que os EUA regularam o mercado de vacinas de um modo muito especial. Lá existe a “Vaccine Court”, uma espécie de órgão semijudicial que julga casos sobre vacinas, mas que está fora do sistema judicial comum. Seria um tipo de Procon para vacinas.

Além disso, as indenizações pagas a consumidores normalmente são financiadas por um fundo especial (um “trust fund”, algo similar a uma fundação).

É um sistema que tem certa lógica. Um fundo apartado das empresas sobre as indenizações e assim as empresas não correm o risco de quebrar devido a processos judiciais. Mas é algo estranho e esquisito no nosso sistema, que funciona na base da boa e velha responsabilidade civil do direito romano. 

De qualquer forma, é capaz que a Pfizer esteja solicitando a participação do Brasil num fundo como esse nos EUA, ou a criação de algo semelhante no Brasil.

Além disso, agora a escolha do foro dos EUA faz ainda mais sentido. Se as ações forem propostas nos EUA, a Pfizer provavelmente poderá usar os privilégios que os EUA dão às farmacêuticas. 


O clima na reunião deve estar tenso. É uma empresa contra um país. O tempo urge.
O Brasil provavelmente está tentando ganhar vantagem na negociação ao recorrer a vacinas alternativas, como a indiana. 


Nota: Este não é um relato jornalístico ou legal. Estou romanceando a situação para fins educacionais.


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