Em clima de
protestos, finalmente surgem as primeiras manifestações contrárias ao mais novo
absurdo promovido pela Receita: a fiscalização de documentos e sentenças de
câmaras brasileiras de arbitragem.
Como havia
mencionado no artigo Ataque à arbitragem (e ódio aos advogados, como decostume), esse “atalho” a que a Receita se valeria para ter acesso aos dados
fiscais e contábeis dos contribuintes é, evidentemente, ofensivo às regras de
sigilo impostas pelas câmaras de arbitragem.
Opinião outra
não foi a do professor Igor Mauler Santiago, conforme artigo publicado no
Conjur abaixo:
Colunas
26junho2013
CONSULTOR TRIBUTÁRIO
Câmara arbitral não deve revelar processos ao
Fisco
A extensão do sigilo das
arbitragens tem animado os especialistas nos últimos dias, sobretudo no que
tange à sua harmonização com o dever de transparência imposto às entidades
paraestatais e às companhias abertas[1].
Não entraremos no debate, que nada tem de tributário. O tema da
coluna de hoje, embora aparentado, é mais restrito: pode o Fisco, em vez de
auditar diretamente os litigantes, exigir das câmaras de arbitragem informações
sobre o conteúdo dos processos que perante elas se desenvolveram?
As notícias são de que a Receita Federal o tem feito (clique aqui para ler)[2], invocando, entre
outros, os artigos 922, I, 927 e 928, parágrafo 1º, do Regulamento do Imposto
de Renda, que — fundados em diplomas velhíssimos, vários deles editados em
períodos de exceção — parecem autorizá-la a solicitar a qualquer pessoa os
documentos e informações que esta detenha sobre qualquer outra[3] [4].
Duas razões desautorizam a medida, a nosso ver. Desde logo, a
redação expressa do Código Tributário Nacional, texto de superior hierarquia a
que se subordinam as leis federais, estaduais e municipais concernentes aos
poderes da fiscalização. Interessam aqui os artigos 195 e 197:
Art. 195. Para os efeitos da legislação tributária, não têm
aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de
examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais
ou fiscais, dos comerciantes industriais ou produtores, ou da
obrigação destes de exibi-los.
Art. 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à
autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos
bens, negócios ou atividades de terceiros:
I – os tabeliães,
escrivães e demais serventuários de ofício;
II – os bancos, casas
bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras;
III – as empresas de
administração de bens;
IV – os corretores,
leiloeiros e despachantes oficiais;
V – os inventariantes;
VI – os síndicos,
comissários e liquidatários;
VII – quaisquer outras
entidades ou pessoas que a lei designe, em razão de seu cargo,
ofício, função, ministério, atividade ou profissão.
Parágrafo único. A
obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a
fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo
em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão.
O artigo 195 é irrelevante, pois se refere aos livros e
documentos do próprio contribuinte, e a pretensão é à entrega, pelas câmaras,
de dados das partes nos processos arbitrais.
Tampouco o artigo 197 autoriza a latitude que a Receita quer
atribuir ao dever de informação de fatos de terceiros, pois as câmaras de
arbitragem não se encaixam nos incisos I a VI, e não há para elas lei
extravagante fundada no inciso VII — requisito que não é satisfeito pela
referência indiscriminada do Regulamento do Imposto de Renda a “todas as
pessoas físicas ou jurídicas”ou expressões congêneres.
Deveras, o que o Código impõe, em atenção à segurança jurídica,
é a indicação precisa dos destinatários deste dever de colaboração. Como
adverte Baleeiro, “esse inciso VII abrange toda a gente, inclusive síndicos de
edifício, contanto que designados em lei, e não apenas pelo discricionarismo
administrativo da autoridade fiscal”[5].
Afirmar o contrário é relegar à inutilidade, contra o cânon
hermenêutico, a enumeração feita pelo próprio artigo 197, pois teria bastado ao
legislador veicular uma cláusula genérica. Pior ainda, é ignorar a disciplina
constitucional da intimidade[6], que veda, mesmo que por
lei específica, o acesso extrajudicial do administrador a certos recônditos,
como os dados bancários do contribuinte (donde a invalidade da Lei Complementar
105/2001, declarada pelo Pleno do STF no RE nº 389.808/PR – relator
ministro Marco Aurélio, Diário da Justiça Eletrônico de 10 de maio de 2011).
Em suma, é preciso lei expressa, que aqui não existe, e esta nem
sempre será compatível com a Constituição, debate que fica prejudicado pelo
silêncio do legislador na matéria.
Não bastasse isso, tem-se ainda — eis a segunda razão anunciada
acima — que as câmaras de arbitragem estão legalmente obrigadas ao sigilo,
encaixando-se na exceção aberta pelo parágrafo único do mesmo artigo 197.
Com efeito, uma vez iniciada a arbitragem, estas funcionam como
meros escritórios dos árbitros, fornecendo-lhes os meios materiais necessários
ao bom desenvolvimento do processo: serviços de secretaria, salas de trabalho e
de reunião, infraestrutura de comunicação e de informática, guarda dos autos e
de documentos etc.
Sendo certo que os árbitros são obrigados ao sigilo, a teor do
artigo 13, parágrafo 6º, da Lei 9.307/1996[7], na leitura uníssona que
dele faz a doutrina[8], não resta dúvida de que
a regra se estende à estrutura que lhes serve de escritório profissional,
ambiente equiparado a “domicílio” ou “casa” pelo artigo 150, parágrafo 4º, III,
do Código Penal e pela jurisprudência do STF, inclusive para efeito de
limitação dos poderes do Fisco (2ª Turma, HC 82.788/RJ, relator ministro Celso
de Mello, Diário da Justiça de 2 de junho de 2006).
Assim, seja por força do artigo 197, parágrafo único, do Código
Tributário Nacional, seja em razão do artigo 5º, XI, da Constituição[9], a coleta forçada das
informações dos litigantes armazenadas nas câmaras de arbitragem, ou — o que dá
na mesma — a imposição de multa pelo descumprimento da intimação para a sua
entrega, só pode fazer-se com apoio em ordem judicial exarada no âmbito de uma
fiscalização específica.
Nunca por mera requisição administrativa, ademais feita às
cegas, para a exigência no atacado de todos os processos arbitrais acaso
existentes, sem menção ao nome de qualquer contribuinte e sem referência a
eventual procedimento fiscalizatório contra ele dirigido.
Admitir tal devassa é o mesmo que afirmar que as secretárias dos
advogados são obrigadas a entregar ao Fisco ou à polícia, mediante simples
intimação, os documentos que estes receberam dos clientes — e que aquelas
manusearam no exercício de suas funções administrativas —, porque não estão
alcançadas pelo Estatuto da OAB.
Trata-se de pretensões que exorbitam as competências deferidas à
administração tributária, a qual — lembra o Ministro Celso de Mello no acórdão
há pouco referido — “embora podendo muito, não pode tudo”.
Nem se objete, como é comum, que a transferência dos dados ao
Fisco não implicará quebra de sigilo, porque também ele é obrigado a mantê-lo
(Código Tributário Nacional, artigo 198).
O jeu de mots não impressiona, pois aqui se
trata justamente do sigilo perante o Fisco, garantido — salvo ordem
judicial — pela Lei de Arbitragem e pelo mesmo Código Tributário.
Em conclusão, é possível que algumas pessoas precisem revelar ao
público as questões que submeteram à arbitragem, e é certo que todas devem
esclarecimentos diretos ao Fisco sobre os resultados dela advindos. Mas as
câmaras não podem ser coagidas, sem ordem judicial, a violar o sigilo a que
estão legalmente vinculadas.
[3] “Art. 922. A
Secretaria da Receita Federal pode determinar regime especial para cumprimento
de obrigações, pelo sujeito passivo, nas seguintes hipóteses (Lei nº 9.430, de
1996, art. 33):
I – embaraço à
fiscalização, caracterizado pela negativa não justificada de exibição de livros
e documentos em que se assente a escrituração das atividades do sujeito
passivo, bem como pelo não fornecimento de informações sobre bens,
movimentação financeira, negócio ou atividade, próprios ou de terceiros, quando
intimado, e demais hipóteses que autorizam a requisição do auxílio da força
pública, nos termos do art. 200 da Lei n º 5.172, de 1966;
(...)
Art. 927. Todas
as pessoas físicas ou jurídicas, contribuintes ou não, são obrigadas a
prestar as informações e os esclarecimentos exigidos pelos Auditores-Fiscais do
Tesouro Nacional no exercício de suas funções, sendo as declarações tomadas por
termo e assinadas pelo declarante (Lei nº 2.354, de 1954, art. 7º).
Art. 928. Nenhuma pessoa
física ou jurídica, contribuinte ou não, poderá eximir-se de fornecer, nos
prazos marcados, as informações ou esclarecimentos solicitados pelos órgãos da
Secretaria da Receita Federal (Decreto-Lei nº 5.844, de 1943, art. 123,
Decreto-Lei nº 1.718, de 27 de novembro de 1979, art. 2º, e Lei nº 5.172, de
1966, art. 197).
§ 1º. O disposto neste
artigo aplica-se, também, aos Tabeliães e Oficiais de Registro, às empresas
corretoras, ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial, às Juntas
Comerciais ou repartições e autoridades que as substituírem, às caixas de
assistência, às associações e organizações sindicais, às companhias de seguros e
às demais pessoas, entidades ou empresas que possam, por qualquer forma,
esclarecer situações de interesse para a fiscalização do imposto (Decreto-Lei
nº 1.718, de 1979, art. 2º ).”
[4] A única norma
posterior à Constituição de 1988 é a Lei nº 9.430/96, cujo art. 33 admite de
modo expresso a recusa justificada à entrega das informações (ver o art. 922,
I, do Regulamento do Imposto de Renda, transcrito na nota anterior).
[5] Direito
Tributário Brasileiro. 12 ed.Atualizada por Misabel Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 2013, p. 1.430.
[6] “Art. 5º, X – são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação;
(...)
XII – é inviolável o
sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal.”
[7] “Art. 13, § 6º. No
desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade,
independência, competência, diligência e discrição.”
[8] Pontes de Miranda. Tratado
de Direito Privado: Parte Especial. Tomo 26. Atualizado por Ruy Rosado
de Aguiar Jr. e Nelson Nery Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 518.
Adriana Braghetta. Notas sobre a confidencialidade na arbitragem. In Revista
do Advogado – AASP, Ano XXXIII, nº 119, abril de 2013, p. 7 e ss.
[9] “Art. 5º, XI – a
casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo caso de flagrante delito ou desastre ou para
prestar socorro ou, durante o dia, por determinação judicial.”
Dr. ADLER, com a devida vênia, percebo que nessas decisões de arbitragem deve haver rendimentos tributáveis que são omitidos ao fisco. Portanto, o arbitrador é cúmplice do crime de sonegação fiscal, ação que o senhor parece defender.
ResponderExcluirCaro Leitor,
ResponderExcluirSua análise é muito superficial. Quase ingênua.
Nosso sistema jurídico funciona assim: o Fisco é responsável por cobrar os impostos, e tem meios legais para apurar o valor devido. O Fisco está em situação muito privilegiada em relação aos credores privados, pois pode ter acesso a documentos contábeis dos contribuintes, além de contar com um procedimento de execução extremamente favorável.
O Fisco não pode, contudo, utilizar meios não descritos na lei para fazer a cobrança de tributos. O Fisco não pode, por exemplo, raptar os filhos de um contribuinte e exigir que os tributos sejam pagos antes que os filhos sejam devolvidos.
O Fisco também não pode, por exemplo, invadir sua casa sem mandadojudicial, atá-lo a uma cadeira e torturá-lo até que você confesse suas dívidas.
E, num exemplo menos dramático, o fisco não pode exigir que advogados e câmaras de arbitragem violem o dever de sigilo profissional.
O fato de os clientes dos advogados ou das câmaras arbitrais deverem ou não tributos é irrelevante. Deixe-me repetir: IRRELEVANTE. Não entra no raciocínio.
Colocado de outro modo: o valor da dívida não autoriza o governo a violar direitos individuais a fim de cobrá-la.
Obrigado por ler o blog.
Abraços,
Adler